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Foto do escritorCasa Eliseu Voronkoff

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Cego e amigo Gedeão à beira da estrada


de Moacir Scliar


— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo Gedeão?

— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.

— Um Simca Tufão? … Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo barulho da máquina.

Este que passou agora não foi um Ford?

— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.

— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas. Conheço o Mercedinho de longe… Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo Gedeão. Doze anos.

É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini Teimoso?

— Não, Cego. Foi uma lambreta.

— Uma lambreta… Enganam a gente, estas lambretas. Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.

Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e anos ouvindo!

Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião… Este que passou não foi um Mercedinho?

— Não, Cego. Foi o ônibus.

— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.

Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um Galaxie?

— Não. Foi um Volkswagen 1964.

— Ah, um Volkswagen… Bom carro. Muito econômico. E a caixa de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que passou não foi um Candango?

— Não, Cego, não foi um Candango.

— Eu estava certo que era um Candango… Como eu ia contando: na sexta, nem sabiam por onde começar.

Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando, pensando… A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!

— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.

— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado demorou a falar comigo. De certo pensou: “Um cego? O que pode ter visto um cego?” Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu, porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?

— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.

— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava? Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:

“Senhor delegado, a que horas foi cometido o crime?”

— “Mais ou menos às três da tarde, Cego” — respondeu ele. “Então” — disse eu. — “O senhor terá de procurar um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.

Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas.” O delegado estava assombrado. “Como sabe de tudo isto, amigo?” — era só o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?

— Não, Cego. Foi um Volkswagen.

— Sim. O delegado estava assombrado. “Como sabe de tudo isto?” — “Ora, delegado” — respondi. — “Há anos que sento aqui à beira da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade às três e quinze.” — “Como é que tu sabias das horas?” — perguntou o delegado. — “Ora, delegado”— respondi. — “Se há coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é calcular as horas pela altura do sol.” Mesmo duvidando, o delegado foi… Passou um Aero Willys?

— Não, Cego. Foi um Chevrolet.

— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?

— Não, Cego. Foi um Ford 1956.



Moacyr Jaime Scliar foi um escritor brasileiro. Formado em medicina, trabalhou como médico especialista em saúde pública e professor universitário. Sua prolífica obra consiste de contos, romances, ensaios e literatura infantojuvenil. Também ficou conhecido por suas crônicas nos principais jornais do país.

O texto acima foi publicado no livro “Para Gostar de Ler — Volume 9 — Contos”, Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 26.

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