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Conte com a gente... mais um dia, mais um conto.

Hoje, escolhemos um conto do grande Nelson Rodrigues. Polêmico pela sua escrita nua e crua, marcou época e continua gerando discussões em torno de sua obra. Nelson Falcão Rodrigues nasceu em Recife em 23 de agosto de 1912 e foi um escritor, jornalista, romancista, teatrólogo, contista e cronista de costumes e do futebol brasileiro. Mesmo sua obra sendo tachada muitas vezes como "vulgar" ou "obscena", é considerado o mais influente dramaturgo brasileiro. Morreu no Rio de Janeiro, em 21 de dezembro de 1980.

 

A Coroa de Orquídeas

Nelson Rodrigues


Quando a mulher entrou em agonia, ele caiu em crise. Ati­rou-se em cima da cama, aos soluços. Foi agarrado, arrastado. Debatia-se nos braços dos parentes e vizinhos; esperneava. E houve um momento em que, no seu desvario de quase viúvo, cravou os dentes numa das mãos próximas. A vítima uivou:

— Ui!

Então, na sala, cercado e contido, chorou alto, chorou for­te. Seu gemido grosso atravessava o espaço e era ouvido no fim da rua. Enquanto isso, o amigo mordido, na cozinha, exibia a mão: “Tirou um naco de carne!”. Alguém perguntou baixo, com admiração: “Mas os dentes dele não são postiços?”. Eram. E, em torno, houve um espanto profundo. Ninguém compreen­dia que um indivíduo que usava na boca uma chapa dupla pu­desse morder com tanta ferocidade e resultado. E, súbito, veio espavorido lá de dentro um irmão da moribunda. Pousou a mão no ombro do Juventino. Pigarreia e soluça:

— Morreu.

Várias pessoas espichavam o pescoço para ver as reações. Primeiro, Juventino levantou-se, esbugalhando os olhos. Depois que assimilou o fato, desprendeu-se de vários braços, num repelão. Dava socos no próprio peito e estrebuchava:

— Me dêem um revólver! Quero meter uma bala na cabeça!

DOR AUTÊNTICA

Essa dor agressiva e autêntica arrepiava. E havia, dissemi­nado no ar, o medo de que o infeliz ferrasse os dentes em algu­ma mão ainda intacta. Durou o paroxismo de dez a quinze minutos. Por fim, a própria exaustão física serviu de sedativo. Ge­mia baixo. Mas, quando o sogro o convocou para ver a esposa, recuou como diante de uma blasfêmia. Num tremor de maleita, rilhando os dentes, soluçou:

— Não vou! Não quero!

Era a sua antiga e irredutível pusilanimidade diante da mor­te. Desde criança tinha medo de qualquer defunto, fosse conhe­cido ou desconhecido, parente próximo ou remoto. A idéia de ver a mulher morta o arrepiava. Defendia-se: “Não!”. E corri­giu: “Agora, não!”. Com o coração disparado, não pôde evitar a seguinte e quase irreverente reflexão: “Por que não pintam os cadáveres?”. Perguntaram:

— O enterro vai sair daqui?

Virou-se:

— Claro!

Um dos vizinhos, o mesmo que fora mordido na mão, va­cila e sugere:

— Não será mais negócio capelinha?

— Por quê?

E o outro, alvar:

— É mais prático. Mais cômodo.

Então, o viúvo exaltou-se. Enfiou o dedo na cara do vizinho:

— Considero um desaforo essa mania de capelinha! É uma falta de respeito! Ora veja!

SAUDADE

Um vizinho e um cunhado partiram, de táxi, para tratar do atestado de óbito e do enterro. Então, andando de um lado pa­ra o outro, numa excitação de possesso, Juventino surpreendeu e confundiu os presentes com uma série de confidências, legí­timas umas, extravagantes outras. Na sua euforia retrospectiva, deblaterava:

— Nunca houve marido tão feliz como eu! Duvido!

Elogiou a mulher de alto a baixo, chamou-a de “anjo dos anjos”, “flor das flores”. E, súbito, diante dos vizinhos atôni­tos e maravilhados, baixa a voz:

— Era tão séria que namorou um ano comigo, noivou dois e só topou beijo na boca depois do casamento! Quer dizer, mu­lher batata!

Havia um aspecto de sua vida conjugai que ainda o envai­decia: o recato da mulher. Sempre conservaria, perante o mari­do, um mínimo de cerimônia. Cutucou o vizinho e segredou: “Teve pudor de mim até o último momento!”. Pausa, arqueja e conclui:

— Nunca tomou injeção que não fosse no braço!

Parecia evidente que esse pudor frenético o deleitava, ain­da agora. Numa brusca cólera, desafiou os circunstantes:

— Isso é que era mulher no duro, cem por cento! O resto é conversa fiada!

CÂMARA-ARDENTE

As providências de ordem prática estavam sendo tomadas. Uma hora depois ou pouco mais, apareceram os funcionários da empresa funerária. Armara-se a câmara-ardente na sala de vi­sitas. Em dado momento, o viúvo teve de levantar-se para aten­der o telefone. Era o cunhado. Estava na casa de flores e deseja­va fazer uma consulta até certo ponto delicada. Perguntou:

— Tua coroa pode ser de orquídeas?

Admirou-se no telefone:

— Pode. Por que não?

Pigarreia o cunhado:

— Mas é puxado!

— Quanto?

O outro disse uma quantia. Juventino esbravejou:

— Ladrões!

Vacila. Lembra-se de que a doença da mulher já lhe custara uma fortuna; contraíra dívidas, tinha na farmácia uma conta estratosférica. Acabou optando por outra solução:

— Vamos fazer o seguinte; orquídea é uma flor besta, so­fisticada. Arranja uma coroa mais em conta.

Do outro lado da linha, veio a pergunta: “Qual é a dedica­tória?”. Hesita novamente. Decide-se:

— Põe assim: “À Ismênia, saudade eterna do teu Juventino”.

ÀS COROAS

Do telefone, veio para a sala. Até então, fiel à própria co­vardia, não fora espiar o rosto da mulher no caixão. E o pior é que seu medo estava mesclado de curiosidade. Costumava dizer, numa frase rebuscadíssima, que o verdadeiro rosto da mu­lher aparece só no amor ou na morte. Mas o diabo era o seu preconceito contra a morte. Acendendo um cigarro, pensava: “Os defuntos são muito feios!”. Por outro lado, ocorria-lhe que, com ou sem pusilanimidade, teria de beijar a esposa antes de sair o enterro. Na sua meditação de viúvo, cogitou de uma so­lução que lhe parecia praticável, qual seja: a de beijar sem ver, isto é, beijar fechando os olhos.

Mais uns quarenta minutos e começam a chegar as coroas. Uma das primeiras foi a sua. Correu, sôfrego; leu a legenda fú­nebre, em letras douradas. As orquídeas tinham sido substituí­das pelas dálias. E Juventino, recuando dois passos, considera­va o efeito. Não pôde furtar-se a um sentimento de satisfação. Disse de si para si: “Bacana!”. À medida que iam chegando mais flores, ele se convencia de que a sua coroa não fazia feio no meio das outras. Pelo contrário. Se não fosse a melhor, podia figurar entre as melhores.

SURPRESA

Às onze horas, a casa estava apinhada. Tinha vindo gente até de Vigário Geral. O inconsolável viúvo era abraçado por uma série de parentes, inclusive alguns que ele julgava mortos e en­terrados. Às onze e meia, Juventino passa por uma nova crise. E uma coisa o atribulava de maneira particular e dolorosíssima: a doença da mulher. Aos soluços, interpelava os presentes:

— Como é possível morrer de pneumonia? Se fosse cân­cer, vá lá. Mas pneumonia! — Virou-se para um vizinho; estre­bucha: — Sabe que eu estou desconfiado que penicilina é um conto-do-vigário?

Neste momento, todos os olhos se voltaram para a direção da porta. Acabava de entrar uma coroa. Era, porém, uma coisa realmente insólita e gigantesca. Dir-se-ia uma coroa de chefe de Estado, de rainha ou, no mínimo, de ministro. Toda feita de or­quídeas, ofuscou automaticamente as demais. Atônito, Juventi­no balbuciou: “Parei!”. Trôpego, a boca torcida e já distraído da própria dor, veio rompendo os grupos, no seu espanto e na sua curiosidade. E, com a mão trêmula, desenrolou a fita. Sole­trou, a meia voz, para si mesmo: “À inesquecível Ismênia, com todo o amor, de Otávio”.

Antes de mais nada, aquele “inesquecível” foi nele uma es­pécie de punhalada material. Ocorria-lhe uma reminiscência ci­nematográfica: Rebecca, a mulher inesquecível. Virou-se para os presentes, que pareciam também impressionadíssimos. Per­guntava de um para outro:

— Otávio? Quem é Otávio? Vocês conhecem algum Otávio?

Não, ninguém conhecia. Mas ele corria, um por um, todos os parentes: “Mas como é possível? Que negócio é esse?”.

DRAMA

A obsessão passou a dominá-lo: voltou para perto da co­roa e leu, releu a legenda. Apertava a cabeça entre as mãos: “To­do amor por quê?”. Concentrou-se. Procurava descobrir, no fun­do da memória, alguém que tivesse este nome, E uma coisa o enfurecia: aquela coroa espetacular, tão mais bonita e até mais cara que as outras. Fazia seus cálculos, em voz alta:

— O cara que mandou isto gastou os tubos. E por quê, meu Deus, por quê?

Houve um momento em que o próprio Juventino se jul­gou também um milionário, mas da loucura. Meteu-se num can­to; já não falava mais com ninguém, feroz e incomunicável. Qua­se ao amanhecer, alguém veio oferecer um cafezinho. Saltou: “Vai-te para o diabo que te carregue!”.

Passam-se os minutos, as horas. Todos os que chegam pas­mam para a fabulosa coroa. Finalmente, na hora de fechar o cai­xão, a própria sogra, soluçando, vem chamar o genro: “Você não vai beijar fulana?”. Ergueu-se. Antes, foi ao escritório apa­nhar não sei o quê. Atravessou por entre os parentes e vizinhos. Estava diante do caixão. E, súbito, mete a mão no bolso e… Só viram quando ergueu um punhal e o afundou na defunta, aos berros de:

— Cínica! Cínica!

A lâmina penetrou por entre as duas costelas. E a morta pa­recia rir.



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