Sobre o imaginário demonizador social imposto à religião
Eu cresci flertando com a igreja cristã evangélica. Digo flertando, pois frequentei pontualmente, mas carregava a noção de que o sagrado era apenas o que ali se apresentava. Ao ter bolsa em escola católica, questionei se aquela religião poderia ser um caminho, a ritualística da missa me chamava atenção em alguns pontos. Para muitos é o lugar e que bom que se sentem felizes nesses espaços. Nada me provocava, contemplava ou preenchia, porém. Até a umbanda.
O que deveria ser simples, uma escolha, um passo rumo a individuação (torna-me quem de fato sou), veio também carregado de: como serei vista agora assumindo uma religião estigmatizada pelo racismo? Ao mundo que me rodeia, não há pior escolha. Talvez até ser ateu seja mas bem aceito do que ser... macumbeiro!
Exu, cultuado em algumas linhas da umbanda como Orixá e também cultuado como linha de entidades/guias espirituais, carrega o estigma de satanás. Afinal, toda força que é poderosa, transcendente e que não cabe nos parâmetros cristãos, demonizada será. As Pombogiras então, em negação de toda sua luz, feminilidade e glória, repousam no imaginário social como espíritos de promiscuidade, demônios que tornam boas moças de família em putas, que roubam maridos alheios e fazem as famigeradas amarrações. A gente cresce ouvindo essas narrativas e poucos se perguntam: será que é isso? Será que aquele povo de branco
e uns "colares" no pescoço perdem suas vidas para fazer mal ao outro?
Dentre os que questionam um pouco mais, poucos também se arriscam a ir conhecer um terreiro, diferente do que aconteceria com qualquer outro culto. Ouvir umas "macumbidades" na música da Maria Bethânia, do Martinho, no carnaval, até vai, mas ir até lá... vai que é só uma histeria coletiva? vai que acontece igual o primo do irmão do cunhado do meu vizinho que foi lá e a vida desandou? Pular sete ondinhas tudo bem, agora entender a causa e a luta contra intolerância religiosa, já é se meter demais com... os macumbeiros, esse povo que mexe com coisa de preto.
O rico mundo cultural, mitológico e ritualístico da umbanda fica soterrado por estigmas e negamos, então, parte da nossa história brasileira, das "cruzas" de cultos africanos, da nossa raiz. É mais fácil conviver com a ideia de que algo é ruim e ponto do que se permitir olhar outros prismas, conhecer, reformular a estreita noção do que é o sagrado. São terreiros que até hoje são queimados e boa parte da população acha que isso é normal: é o castigo por, fantasiosamente, desafiar as leis cristãs. Em vão nome de Deus, tudo é justificável. Que divindade é essa que incendeia locais de trabalho, afeto e fé de várias pessoas apenas por capricho? Apenas o ego humano, a necessidade de poder e de firmar a sua verdade como única.
A umbanda, já diria nosso hino, é paz e amor. Mas também é luta! Porque o racismo religioso internalizado se mostra diariamente. Quantos umbandistas assumem sua fé sem medo de serem ofendidos? Quantos podem falar dela com naturalidade com seus familiares? Quantos tem seus ritos e cuidados aceitos?
Muita fantasia, muita repressão e uma boa dose do medo do desconhecido ainda ronda a religião. A que serve o medo da umbanda se não para aprisionar os corpos e mentes?
Laroyê Pombogira, gira na tua dança libertadora. Só recebe o axé quem se permite enxergar!
Este texto é de responsabilidade do autor/da autora.
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